De Ruben Alves
Mil
e uma noites haviam se passado desde que o Pássaro Encantado partira.
Então ele voltou. Era madrugada. A Menina o viu tão logo a luz alegre do
sol fez brilhar as suas penas. Ela o estava esperando. Os apaixonados
esperam sempre... Ah! Como foi bom aquele abraço de saudade! Desta vez
as suas penas estavam coloridas com as cores das florestas sobre as
quais voara. O Pássaro Encantado pôs-se então a cantar os seres das
matas, árvores, orquídeas, regatos, cachoeiras, elfos e gnomos... A
Menina não se cansava de ouvir. Ouvia e pedia que ele contasse de novo
as mesmas estórias, do mesmo jeito. E assim viviam os dois se amando por
dias e dias. Mas sempre chegava o momento em que o Pássaro dizia:
“Menina, o vôo me chama. Preciso partir. É preciso partir para que o
nosso amor não tenha fim. O amor precisa de saudade para viver...” A
Menina chorava baixinho mas compreendia. E assim o amor acontecia entre
partidas e retornos.
As
asas do Pássaro pareciam incansáveis. Estavam sempre à procura de
lugares desconhecidos. Ele já visitara montanhas encantadas, planícies
geladas, lagos, rios, abismos, castelos, uma cidade construída na divisa
entre a realidade e a fantasia, um reino onde era proibido estar
triste, lugares sagrados, vulcões, o país dos dragões verdes e dos
gigantes amarelos, jardins, selvas verdes, mares azuis, praias
brancas... Sobre todos esses lugares ele lhe contara estórias. A Menina
não tinha asas. Mas ela voava nas estórias que o Pássaro lhe contava.
Mas
os anos foram se passando. O Pássaro envelheceu. Suas asas já não eram
as mesmas da juventude. E também os seus sonhos já não eram os sonhos da
mocidade. Deseja-se partir quando é manhã. Mas quando o sol se põe o
que se deseja é voltar. E assim um desejo novo surgiu no coração do
Pássaro crepuscular: voltar...
O
sol acabara de se pôr. Vênus brilhava no horizonte. Foi então que a
Menina o viu. Suas penas pareciam incendiadas pelo sol. Depois do abraço
ele disse para a Menina algo que nunca lhe dissera antes: “Menina,
conte-me as estórias da minha ausência...” E foi assim que, pela
primeira vez, o Pássaro se calou e a Menina lhe contou estórias.
Por
muitos dias o Pássaro e a Menina gozaram do seu amor. Mas o Pássaro já
não era o mesmo. Algo acontecera com os seus olhos. Já não procuravam
horizontes longínquos. Eles olhavam as coisas simples que havia na sua
casa, coisas que sempre estiveram lá, mas que ele nunca havia visto. Não
vira porque o seu coração estava em outro lugar. É o coração que nos
diz o que é para ser visto.
Aconteceu
então, num dia como os outros, o Pássaro abraçou a Menina, e ele
sentiu, nas costas da Menina, algo que nunca sentira.
“Menina, o que é isso?” ele perguntou. Ela enrubesceu e respondeu:
“Asas, pequenas asas... Estão crescendo nas minhas costas...”
E
para que ele as visse baixou sua blusa. E ele viu. Sim, pequenas asas,
delicadas asas, asas de borboleta, coloridas, diáfanas, frágeis... E ele
percebeu que a Menina se preparava para voar. Sua Menina se
transformara numa borboleta...
O
Pássaro sorriu uma mistura de alegria e de tristeza. Sentiu um leve
tremor nos lábios, aquele mesmo tremor que vira nos lábios da Menina a
primeira vez que lhe dissera: “Eu quero partir...” Chegara a hora em que
ela partiria e ele ficaria. Ele seria, então, aquele que esperaria.
Como é dolorido ficar! A solidão de quem fica é maior que a solidão de
quem parte! Quem parte vai para mundos novos, cheios de maravilhas
desconhecidas. Quem fica, fica num espaço vazio, de objetos velhos,
esperando, esperando, contando os dias.
O momento da despedida chegou. A Menina, flutuando com suas grandes asas de borboleta, disse ao Pássaro: “Preciso partir...”
O
Pássaro teve vontade de chorar. Queria lhe dizer: “Não vá. Eu a amo
tanto.” Mas não disse. Lembrou-se de que essas haviam sido as palavras
que a Menina lhe dissera, quando ele partira pela primeira vez. O
Pássaro temia por ela. Suas asas eram tão frágeis, asas de borboleta que
quebram-se atoa. Queria estar com ela para consolá-la na solidão e no
cansaço. Mas não fez gesto algum. Ele sabia que os abraços que não se
abrem são mortais para o amor.
Ele
estendeu a sua mão num gesto de despedida. A Borboleta voou e nela
pousou. Ele se aproximou dela, como se fosse beijá-la. Mas não beijou.
Apenas soprou suas asas suavemente. “Voa, minha linda Borboleta”, ele
disse, se despedindo. A Borboleta bateu suas asas, voou e desapareceu
na distância.
Então,
ao olhar de novo para si mesmo ele não se reconheceu. Já não era o
Pássaro Encantado de penas coloridas. Transformara-se num Menino... Um
Menino que não sabia voar. Um Menino que esperava a volta da Borboleta
Encantada. Então ele voaria nas asas das estórias que ela haveria de lhe
contar...
Esta
“estória” tem uma “história”. Trata-se da continuação da estória “A
Menina e o Pássaro Encantado” (Edições Loyola) que escrevi para minha
filha pequena, Raquel. Devia ser o ano de 1980. Eu iria fazer uma viagem
longa para o exterior e ela chorava. Eu devia ter 46 anos, bastante
cabelo preto e energia para conquistar o mundo. Os anos se passaram,
minhas asas se cansaram e agora nem tenho energia e nem vontade de
conquistar o mundo. Ainda tenho prazer em viajar mas as viagens
freqüentemente me cansam. Não é cansaço físico. É um cansaço na alma,
com aquele descrito no primeiro capítulo do livro de Eclesiastes. Quando
todo mundo está viajando eu quero mesmo é ficar. Karl Jaspers dizia que
não viajava porque na casa dele estavam todas as coisas dignas de serem
conhecidas. Minha loucura ainda não chegou perto da dele. Mas o fato é
que há, na minha casa, uma infinidade de coisas interessantíssimas que
eu deveria gastar tempo em conhecer. Tantos poemas e contos que não li,
tantos livros de arte, tantos CDs que ainda não ouvi... E há também
Pocinhos do Rio Verde, meu mosteiro... Esse é o destino dos pais. Há um
momento em que os filhos batem as asas e se vão. Os pássaros sabem disso
e não reclamam. Muitos pais e muitos avós tratam de fazer lugares
deliciosos para seus filhos e netos passarem os fins de semana! Na
viagem para Pocinhos do Rio Verde passo sempre defronte a um “Sítio do
Vovô”. Imagino o Vovô e a Vovó sozinhos na varanda do sítio, esperando
os filhos e os netos que não vêm. Eles estarão provavelmente em algum
clube ou praia... Há um momento na vida em que o destino dos pais é
esperar...Os apaixonados são aqueles que esperam...
Publicado no Correio Popular 13/02/2005